terça-feira, 31 de janeiro de 2017

«Verdadeiramente sou quem fui» - Sophia

[transcrito da p. 21, do JL, de 13 a 26 de maio de 2015, que o refere como o último dos dez poemas inéditos que «encerram» a edição da O. P., de 2015]

A minha vida está vivida
Já minha morte prepara
Seu pó de beladona
Viajarei ainda para me despedir das imagens
Antes de despir a túnica do visível

Em vão me engano
Verdadeiramente sou quem fui
Atravessando quartos forrados de espelhos
ardentes
E diluída no fulgor da Primavera antiga

Se ainda busco o promontório de Sunion
É porque nele vejo a minha face despida
O mitológico mundo interior e exterior
Da minha própria unidade perseguida

Mas como despedir-me deste sal
Deste vento inventor de degraus e colunas
Como despedir-me das pedras deste mar
E deste denso amor e sem costuras

Sophia de Mello Breyner Andresen